quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O amor é lindo


“Aquelas meias haviam sido compradas na primeira viagem que fiz com a minha mulher, poucos meses depois de começarmos a namorar. Uma viagem em que cruzamos os Estados Unidos de carro, sem rumo, parando de cidade em cidade, dormindo em motéis de beira de estrada e nos descobrindo _ descobrindo, por exemplo, que eu não era o tipo de cara que gosta de cruzar um país de carro, sem rumo, parando de cidade em cidade, dormindo em motéis de beira de estrada. Meu apego por road movies, me dei conta, enquanto discutia com a voz do GPS numa highway de oito pistas em algum lugar do Arizona, tinha mais a ver com movies do que comroad. (Há uma diferença nada sutil entre assistir a Paris, Texas e estar em Paris, Texas _a diferença, digamos, entre um deserto e uma poltrona.)
Foi lá pelo meio da viagem, quando eu estava aflito, espremido entre caminhões mastodônticos e o possível fim do namoro _ela sempre querendo ver o que havia do lado de lá da montanha, eu sugerindo tomar uma cerveja na próxima esquina_ que comprei as tais meias, numa cidadezinha em Nevada. Eram grossas, confortáveis, meias de domingo, daquele velho domingo que ‘pede cachimbo’ na canção infantil. Apesar de estrangeiras, emanava delas o inconfundível aroma do lar. Algo sutil, claro: mas não é nas sutilezas que Deus e o Diabo se escondem? Pois as meias verdes amaciaram um pouco aqueles dias atribulados.
Teve uma tarde, já no fim da viagem, em que subimos um platô em Monument Valley, no Arizona. Um cenário de faroeste, digno de John Wayne ou Papa-Léguas, e, embora _ou talvez exatamente porque_ escalar um platô no meio do deserto fosse a caricatura do que me desagradava no pacote aventura, a epítome do desconforto, consegui relaxar e aproveitar. Ao chegar lá no alto, suados, tiramos os sapatos, ficamos em silêncio, um encostado no outro, admirando a paisagem marciana. Anos depois, mesmo tendo lavado dezenas de vezes as meias verdes, uma manchinha da terra vermelha de Monument Valley resistia, impregnada às suas fibras. Sempre que abria a gaveta e as via, me voltava à memória aquele momento da viagem, o momento em que entendi que o namoro, apesar de nossas diferenças _eu, poltrona; ela, platôs_ iria dar certo. E deu.”
Trecho de Ficando para Trás, crônica de Antonio Prata


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