terça-feira, 3 de junho de 2014

Tapa na cara

José foi assaltado. Levaram o carro dele. Ao chegar em casa de táxi, ele imediatamente assumiu a culpa pelo roubo: “Eu dei bobeira, não deveria ter parado naquele semáforo”.

Maria foi estuprada e quase morreu. Ao prestar depoimento ela deixou bem clara sua responsabilidade pelo episódio: “Eu vacilei, não deveria ter ido comprar pão sozinha”.

Um ladrão arrancou o telefone celular das mãos de João enquanto ele atendia uma ligação. Ele,– o João e não o ladrão, – assumiu total culpa pelo crime: “Eu não sei onde estava com a cabeça quando fui atender uma ligação no meio da rua”.

Maria foi morta durante um assalto. Ela gritou e acabou levando um tiro. Por ocasião de seu enterro, Maria foi condenada por todos os presentes: “Que estupidez dela ter gritado; todo mundo sabe que durante um assalto o melhor é ficar em silêncio”.

Mário, um dedicado Policial Militar, foi morto a tiros por traficantes do morro no qual morava. Seus familiares, entrevistados por um jornalista, o recriminaram duramente: “Ele sempre foi cabeça-dura, nunca quis esconder a farda quando voltava para casa”.

No mesmo morro, Paulo, um líder comunitário, foi esfaqueado até a morte pelos mesmos traficantes. Seus amigos o criticaram ferozmente: “Que falta de juízo, procurar a Polícia para denunciar que o crime estava dominando o morro”.

Marcos teve sua loja assaltada e quase levou um tiro. Seus empregados reclamaram dele: “Que estupidez deixar aquele monte de mercadoria exposta na vitrina”.

Marcos passou a deixar tudo trancado em um cofre. Mas a loja foi assaltada de novo e um de seus funcionários, após quase levar um tiro por ter demorado a abrir o cofre, agrediu-o violentamente: “Seu miserável, fica trancando tudo, mais preocupado com as mercadorias do que com a gente e quase levamos um tiro por sua causa”.

Carlos estava jantando com sua namorada em um movimentado restaurante quando uma quadrilha armada saqueou todos os clientes. Seu futuro sogro não gostou: “Este rapaz é um irresponsável, ele sabe muito bem que não estamos em época de ficar bestando por aí, jantando fora, e acabou passando por um assalto e traumatizando minha filha”.

Joel entrou em um subúrbio com o caminhão da empresa para entregar pacotes de biscoito nos bares de lá. Após ter tido os produtos e o caminhão roubados, e quase ter sido morto, foi despedido por seu chefe: “Que sujeito burro, ir com o caminhão lá naquele bairro sem pedir licença para o líder do tráfico local”.

Patrícia viajou a negócios. Desembarcou no aeroporto com seu “notebook” e tomou um táxi. Não conseguiu andar dois quarteirões foi assaltada em um semáforo. Na empresa, foi imediatamente repreendida: “Você não poderia ter desembarcado sem antes esconder o “notebook”; deste jeito você pediu para ser assaltada”.

E é assim, de exemplo em exemplo, todos já fazendo parte do nosso cotidiano, que vamos chegando a uma verdadeira “rotina do absurdo”.

Aqui no Brasil é tão normal um cidadão ter medo de andar pelas ruas, é tão comum um policial ter que esconder sua profissão para não morrer, é tão usual pessoas terem que pedir permissão a traficantes para subir em morros e é tão rotineiro abrir-se mão da cidadania mais básica, que já não causa surpresa as vítimas estarem se transformando em culpadas pelos crimes.

Diante desta tenebrosa realidade, patrocinada pela fraqueza e falta de firmeza das nossas instituições, talvez já não nos cause surpresa ver um rabo abanando um cachorro.

(Desconheço a autoria)

Para os gastrosexuais